Anthropology & SALSA on COVID-19

Dinamicas migratórias nas cidades amazônicas em tempos de Covid-19: entrevista com o professor Dr. Sidney Antônio da Silva (PPGAS-UFAM) (06-25-21)

Dinamicas migratórias nas cidades amazônicas em tempos de Covid-19: entrevista com o professor Dr. Sidney Antônio da Silva (PPGAS-UFAM)

Valentina Nieto

06-25-21

SIDNEY ANTONIO SILVAO professor Sidney Antônio da Silva (PPGA-UFAM) é coordenador do grupo de Estudos Migratórios na Amazônia (GEMA) e da rede Territorialidades, Deslocamentos, Paisagens Urbanas e Populações Tradicionais do INCT Brasil Plural. Conversamos com ele sobre suas pesquisas recentes com populações migratórias no norte do Brasil, as atividades do GEMA e as afetações da pandemia de Covid-19 nas populações migratórias.

Valentina: Gostaria que você começasse contando um pouco sobre suas pesquisas atuais:

Prof. Sidney: Bom, na atualidade meu trabalho se volta para duas frentes.  A primeira é de tentar entender a passagens dos imigrantes haitianos pela cidade de Manaus desde os inícios de 2010 até 2020, tempo em que milhares deles passaram por esta cidade em direção a outras regiões e cidades brasileiras. No início dessa migração internacional, até então não constatada na Região Norte do Brasil, Manaus passou a ser um ponto de intersecção e ganhou uma visibilidade que não tinha antes.

Desde sua chegada em 2010, os imigrantes haitianos enfrentaram muitas dificuldades e, em razão da ausência do Estado como promotor de políticas públicas, foi a sociedade civil organizada que procurou dar respostas às suas demandas mais urgentes. Foi nesse contexto que me interessei por entender os significados dessa presença migratória pela fronteira norte, até então não constatada. As perguntas que se faziam à época eram: “Por que o Brasil?”, “por que o Amazonas?”, “por que Manaus?”.  Para entender melhor a situação fizemos uma pesquisa em 2014-2015 em várias capitais do Brasil.  Para realizá-la fizemos uma parceria com o Núcleo de Estudos de Populações da Unicamp (NEPO), com a Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e com a Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), com a professora Glaucia Assis.  Desta parceria de pesquisa saíram várias publicações (https://gema.ufam.edu.br/publicacoes-gema/90-em-busca-do-eldorado-o-brasil-no-contexto-das-migracoes-nacionais-e-internacionais.html).

Inicialmente, meu interesse se voltou mais para a questão da chegada dos haitianos, de sua acolhida, das políticas públicas, de sua inserção no mercado de trabalho e questões alusivas às trocas socioculturais. Recentemente eu tenho me voltado mais para a questão religiosa. Sabemos pelas pesquisas que grande parte deles não se reonhecem como católicos, eles chegam no Brasil dizendo pertencer a alguma denominação religiosa protestante, mas ao chegar em Manaus procuram se inserir nas igrejas evangélicas locais.  O contato deles com a Igreja Católica, através da Pastoral do Migrante é uma estratégia para resolver, em grande parte, seus problemas do cotidiano, como alimentação, documentação, a busca por trabalho, entre outros. Há uma participação deles em diferentes igrejas evangélicas e minha preocupação é saber como se dá essa inserção, quais negociações fazem. Recentemente publiquei um texto um artigo na revista Social Compass, sobre isso: (Haïtiens à Manaus et à Porto Velho : processus d’insertion religieuse et possibles impacts sur le champ protestant local, 2021). Bom, este é um trabalho ainda em aberto,  em andamento,  à espera de ser retomado assim que as condições de trabalho de campo sejam favoráveis, pois em razão da pandemia não foi possível fazer mais pesquisa de campo.

 Igreja do Divino Espírito Santo, Tabatinga /AM. Este é um dos lugares de acolhida de haitianos desde 2010. Foto ACNUR.

Já com relação aos venezuelanos, a partir da chegada deles na Região Norte, primeiro na fronteira, Pacaraima e Boa Vista (RR) e, posteriormente, em Manaus, sobretudo, a partir de 2015 e 2016, nossa primeira preocupação foi com os indígenas warao. Isso porque eles chamaram a atenção pelo fato de ficarem acampados ao lado da rodoviária da cidade, o  que gerou um certo incômodo na população e nas autoridades locais que não sabiam como lidar com esta situação. Naquele momento, nem a academia, nem os agentes públicos sabiam o que fazer, por se tratar de algo novo na cidade. Fomos desafiados a discutir esse tipo de migração, ou seja, entender as suas especificidades, para poder elaborar respostas concretas que viessem atender suas demandas. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) solicitou ao nosso grupo de pesquisa (GEMA) que fizesse um levantamento sobre essa realidade migratória no final de 2017 e início de 2018. Esse trabalho resultou num documento publicado pela OIM (https://gema.ufam.edu.br/publicacoes-gema/87-diagnostico-e-avaliacao-da-migracao-indigena-da-venezuela-para-manaus-amazonas.html) no qual fizemos várias sugestões para a criação de políticas públicas voltadas para a imigração dos indígenas warao na cidade de Manaus. Infelizmente várias sugestões não saíram do papel.  Bom, hoje eles já estão em várias regiões do Brasil, no norte,  sul e já chegaram na região sudeste.  Esta mobilidade constante é parte de sua estratégia de reprodução socioeconômica, já que nos locais de origem as condições de sobrevivência são limitadas, em razão da deterioração da água e do solo causada por grandes projetos governamentais.

A questão que se coloca é como lidar com uma população que está em constante movimento. Esse é um grande desafio para os gestores públicos que ficaram totalmente perdidos, sem saber o que fazer com essa população que não quer ser tutelada, que não quer ficar presa nesse esquema de abrigos, de acolhimentos institucionais regulados. Esse é um grande desafio que está ainda posto. Isso não se refere somente aos warao, pois hoje o que marca as migrações internacionais é essa constante mobilidade, em razão das mudanças socioeconômicas e políticas. Tal situação de instabilidade gera vulnerabilidades, que foram aprofundadas com a chegada da pandemia de Covid-19.

Outra frente em aberto e que me preocupa, não só do ponto de vista da pesquisa, mas que é preciso dar uma resposta, é a questão dos refugiados. Essa população precisa de uma atenção especial, principalmente os jovens que querem ingressar ou reingressar no ensino superior e que não têm como disputar a entrada na universidade pública utilizando os mesmos caminhos disponíveis aos estudantes brasileiros, em razão da dificuldade do idioma e do desconhecimento dos trâmites exigidos pela legislação brasileira. Nesse sentido, é preciso criar uma política de ações afirmativas para viabilizar o ingresso desses imigrantes no ensino superior. Nessa perspectiva existe a proposta do ACNUR que é a cátedra Sérgio Vieira de Mello. Essa cátedra é uma parceria dessa agência da ONU com universidades para criar mecanismos de ingresso dos refugiados no ensino superior, pois, segundo essa mesma agência somente 3% de refugiados no mundo se inserem no ensino superior.  Firmando essa parceria, as universidades só têm a ganhar pois, em razão da diversidade cultural dos refugiados, todos se enriquecem com sua  presença.

A cátedra já existe em várias universidades brasileiras, mas em Manaus ainda não foi efetivada. Antes da pandemia estávamos fazendo todo o processo de construção dessa política, mas infelizmente a pandemia o interrompeu. Estamos tentando retomar esse processo pois há uma demanda reprimida em Manaus, com muitos alunos querendo estudar e não podem em razão dessas limitações. Esse é um grande desafio à espera de respostas práticas.

Valentina: De onde vêm os refugiados?

Prof. Sidney: Atualmente são os venezuelanos que entram nessa condição de refugiado. Haitianos também entravam no Brasil solicitando refúgio, mas agora já não o fazem, porque as regras de ingresso mudaram para eles. Havia outros grupos: peruanos, colombianos, africanos em situação de refúgios, mas atualmente a grande demanda é de venezuelanos.

Então, esse é um desafio não só aqui, mas no mundo, pois há milhões de pessoas solicitando refúgio por diferentes razões e o Brasil precisa olhar com mais cuidado para essa questão, sobretudo aqui na região norte. Então, essas são as frentes de pesquisa, de ação concreta, diríamos de uma antropologia aplicada, que dê respostas às problemáticas atuais de imigrantes e refugiados.

Valentina: Quando você fala “nós” é seu grupo de pesquisa?

Prof. Sidney: Sim, temos o Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia, o GEMA (2007), que é formado por professores e alunos da graduação e da pós-graduação da UFAM. Atualmente, além das temáticas mencionadas antes, temos a doutoranda, Luiza Guglielmin pesquisando a migração de palestinos em Manaus, outra forma de migração iniciada no século passado; outro doutorando, David Saenz,  pesquisando a migração religiosa de um grupo denominado de “Israelitas” do novo pacto universal, um grupo religioso peruano que migrou para a Região Norte do Brasil em busca da “terra prometida”. Tem uma mestranda, Silvia Pacheco, pesquisando a segunda geração de haitianos em Manaus, ou seja, as crianças nascidas no Brasil. Aliás, essa temática é um grande desafio, pois há uma lacuna nos estudos de migração. Em geral as pesquisas focam nos adultos e a criança fica invisibilizada, ela está aí, mas parece que não existe enquanto sujeito, apenas como número. Sandro Amorin, outro doutorando, está tentando reconstruir a memória dos descendentes de Barbadianos, que vieram trabalhar na construção da ferrovia Medeira-Mamoré no século passado, uma migração histórica, ainda no ciclo da borracha, pouco estudada aqui em Manaus. Outra doutoranda, Roziane Jordão, está pesquisando os intelectuais e artistas haitianos, outra faceta dessa migração, porque muitas vezes se fala dos “haitianos” e esquecemos que há uma grande diversidade nessas migrações, seja do ponto de vista etário, de gênero, do ponto de vista profissional. Temos, portanto, várias pesquisas em andamento, com vários temas e a partir de diferentes perspectivas antropológicas. É, portanto, um vasto campo de estudos em aberto.

Valentina: Como os estudantes estão adaptando suas pesquisas neste momento em que fica difícil fazer trabalho de campo por conta das medidas de distanciamento social?

Prof. Sidney: Sim, de fato a pandemia impactou muito no trabalho de campo.  Alguns conseguiram avançar um pouco mais, mas outros não, afetando a dinâmica da pesquisa e, consequentemente, o seu resultado. Alguns conseguiram resolver isso usando as redes da internet, mas outros não. Ainda não sabemos como vai ser o resultado disso tudo. Esperamos que consigam contornar esses desafios metodológicos e possam de fato avançar e produzir conhecimentos.

Valentina: Estas migrações recentes são forçadas? Até que ponto são decisões individuais?

Prof. Sidney: É necessário pensar a decisão do sujeito migrante, evidentemente potencializada pela questão das redes sociais e migratórias que acabam direcionando essas migrações, mas não podemos ignorar as causas estruturais, como é o caso dos haitianos. Nesse caso, o terremoto de 2010 contribuiu para aumentar a saída deles do Haiti, mas este fenômeno por si só não explica a emigração haitiana, que é histórica, até porque já antes dessa catástrofe natural já havia uma grande migração para outros países da região caribenha, América do Norte e Europa. É claro que o migrante tem sua agência, um certo grau de liberdade, mas ele está sujeito também a fatores macroestruturais, sobretudo, na questão venezuelana, em que a população está fugindo da insegurança alimentar, da denominada “dieta de Maduro”, que de certa forma, compõe um cenário preocupante de violação de direitos básicos. No caso do Brasil, que reconhece a violação dos direitos humanos como razão de refúgio, cerca de 46 mil venezuelanos já foram reconhecidos como refugiados. Isso significa um avanço na política de refúgio no Brasil.

Já no caso de Haiti, há também essa questão estrutural, que o terremoto só aprofundou, mas há toda uma questão relacionada ao sonho do imigrante, que no caso haitiano é uma questão histórica. Desde início do século XX o Haiti é um estado transnacional, que depende da remessa dos imigrantes e, portanto, há uma ideia de que a vida melhor só é possível no exterior. Essa é uma questão que faz parte desse imaginário migratório haitiano, chèche lavi miyò, ou buscar uma vida melhor. O Haiti é representado como o lugar que eles amam, o país deles, mas somente para voltar, para passar férias ou visitar a família e não mais para viver, pelo menos para a segunda geração nascida no exterior, para a qual o Haiti é representado como um país pobre.

Valentina: Há uma rejeição de parte da população brasileira em acolher esses migrantes?

Prof. Sidney: Com certeza, no caso dos haitianos, há um recorte racial, não só social, cultural ou econômico. Em geral, o imigrante é visto como mão de obra barata e temporária. O sociólogo argelino, Sayad falava sobre isso quando analisou a imigração argelina na França (ver: A Contemporaneidade do pensamento de Abselmalek Sayad. São Paulo, Educ, 2020). Para o capital, o imigrante é mão de obra barata e com direitos mínimos. Portanto, os haitianos foram vistos pelos empresários brasileiros como mão de obra barata, pois eles estavam chegando num momento em que a economia brasileira estava necessitando dessa força de trabalho (2010-2014), quando ainda havia algum crescimento econômico no país.

Mas, vale ressaltar que o imigrante não é somente força de trabalho. Eles não querem ser vistos dessa forma. Eles reivindicam participação na sociedade brasileira, como ter acesso à educação, empreender, aliás, esse é o grande sonho do imigrante, ser um grande empreendedor, ter seu próprio negócio. Contudo, esse sonho muitas vezes não se realiza, pois ele encontra várias barreiras, dificuldades para tornar-se realidade. E no caso deles, o recorte racial é também um marcador social.

No caso dos venezuelanos, há um preconceito relacionado com a questão política. Eles vêm de outro regime político que é visto como ditatorial pela mídia brasileira e pelo senso comum, taxando-os de preguiçosos, ou seja, não querem trabalhar, mas viver de assistência social. Em Manaus, se ouve com frequência que haitianos são trabalhadores, já venezuelanos, não. Dessa forma, vai se criando estereótipos, fato que não é novidade na história das migrações internacionais no Brasil. No século passado. europeus no Sul do Brasil eram vistos como imigrantes trabalhadores e empreendedores, já os brasileiros não.

Valentina: Existe alguma informação diferenciada, sobre as afetações da pandemia na vida dos imigrantes?

Prof. Sidney: Sim, inclusive em 2020 foi feita uma pesquisa em nível nacional coordenada por pesquisadores do NEPO/UNICAMP. Em Manaus, eu coordenei esse estudo, cujos resultados podem ser acessados na página do NEPO (https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/_impactospandemia.php).

No norte, vemos que a pandemia afetou diretamente na questão do trabalho, que já era precário, mas com as medidas de isolamento social, tudo se tornou ainda mais difícil, porque grande parte do trabalho deles é feito de forma informal nas ruas de Manaus. Com o início da pandemia, em março de 2020, a circulação foi restrita em diferentes momentos e eles ficaram praticamente sem renda e sem condição de sobrevivência. É uma situação muito difícil constatada entre haitianos e venezuelanos que encontram na mendicância uma forma de sobrevivência. Haitianos também foram afetados, porque grande parte deles trabalha com venda de alimentos nas ruas, sobretudo, com a venda de sorvete, Há uma cooperativa na cidade, coordenada pela Pastoral do Migrante da Igreja São Geraldo, a qual fabrica o sorvete e o revende mais barato para os picolezeiros, que vão para as ruas vender. Agora eles dependem da ajuda que a pastoral lhes oferece, através de cestas básicas.

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